A ÁRVORE DA FÉ CRISTÃ

por

JACOB BÖEHME

CAPÍTULO I

O QUE É FÉ, COMO A FÉ É UM ESPÍRITO EM DEUS

1. O Cristo diz: Buscai, em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas (Mth 6.33). Meu Pai dará o Espírito Santo aos que o pedirem (Lc. 11.13). Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas futuras. Ele me glorificará porque receberá do que é meu e vos anunciará (JO 16.13,14). Pois eu vos darei eloquência e sabedoria, às quais nenhum de vossos adversários poderá resistir, nem contradizer (Lc. 16.15). E São Paulo diz: Não sabemos pedir o que convém, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis, e aquele que perscruta os corações sabe qual o desejo do Espírito (Rm 8.26).

2. Ora, a fé não é um conhecimento histórico, com o qual o homem pode criar artigos e confiar unicamente neles, forçando sua mente nas obras da razão: ao contrário, a fé é um Espírito em Deus, pois o Espírito Santo se movimenta no espírito da fé.

3. A fé verdadeira é um poder de Deus, um Espírito em Deus. Ela opera em Deus e com Deus. Ela está livre de qualquer artigo, a não ser do verdadeiro amor, onde reúne o poder e a força de sua vida; a conjectura e desilusão humana não tem nenhuma conseqüência.

4. Assim como Deus é livre de qualquer inclinação, de forma que faz o que quer, sem precisar prestar contas sobre isso, a fé verdadeira também é livre no espírito de Deus. Ela não tem inclinação senão ao amor e à misericórdia de Deus; a fé lança sua vontade na vontade de Deus, se afastando da razão sideral e elemental; a fé não se busca na razão carnal, mas no amor de Deus. E quando, neste caminho, ela se encontra, se encontra em Deus e opera com Deus; não age segundo a razão, seja ela qual for, mas age em Deus seja qual for o Espírito de Deus. Isto porque a fé, considera a vida terrestre como nada, a fim de que posa viver em Deus, e que o Espírito de Deus nela possa ser a vontade e a realização. A fé se rende à vontade de Deus e sucumbe na razão e na morte, mas ressurge com o Espírito de Deus, na vida de Deus. É como se fosse um nada, mas que em Deus é tudo; é um ornamento e uma coroa da Divindade, uma maravilha na magia divina. Ela faz onde não há nada e vai onde nada é feito. É operativa e ninguém vê o seu ser; ela se eleva, embora não precise de elevação. É poderosa e ao mesmo tempo a mais modesta humildade. Ela tudo possui e ao mesmo tempo não aspira mais do que a bondade. Ela é, desta forma, livre de qualquer iniquidade e não possui lei, pois a implacável ira da natureza não tem influência alguma sobre ela. Ela existe na eternidade, pois não é compreendida na terra; ela não é ameaçada por nada, e exatamente como a eternidade, é livre e não repousa em nada a não ser em si mesma, onde há uma eterna bondade (tranqüilidade).

5. Assim também ocorre com a fé verdadeira e reta. Ela é em si um ser essencial. Ela tem vida, mas não busca sua vida e sim a vida da tranqüilidade eterna. Ela sai do espírito de sua vida e se possui: está livre de dor, assim como Deus está livre de Dor, e habita na eterna liberdade de Deus. Com relação a eterna liberdade de Deus, é como um nada, e mesmo assim está em tudo. Tudo o que Deus e a Eternidade são e são capazes de fazer lhe serve em algum lugar. Ela não se deixa aprisionar por nada, embora seja uma amostra do habitar no grande poder de Deus. É um ser e não é dominada por nenhum ser. É companheira e amiga da Virgem Divina que é a sabedoria de Deus; nela reside as grandes maravilhas de Deus. É livre de todas as coisas, assim como a luz é livre do fogo, ainda que gerada pelo fogo, contudo o tormento do fogo não pode surpreendê-la ou alcançá-la.

6. Tentamos mostrar que a fé é extraída do espírito da vida, de um fogo ardente e que brilha neste fogo; ela enche o fogo de vida e ainda assim nunca se mantém aprisionada. Mas se ela se encontra aprisionada é porque adentrou a razão como quem se adentra a uma prisão, não estando mais em Deus, em sua liberdade, está num tormento; ela se atormenta, embora tenha condições de se libertar. Na razão ela opera maravilhas no fogo da natureza, e na liberdade ela opera as maravilhas de Deus no amor.

CAPÍTULO II

SOBRE A ORIGEM DA FÉ, E PORQUE A

FÉ E A DÚVIDA HABITAM JUNTAS

1. Observando então que a fé é um Espírito com Deus, reflitamos sobre sua origem, pois não podemos dizer que seja um aspecto ou imagem da Razão. Ao contrário, é a imagem de Deus, a semelhança de Deus, um aspecto eterno, ainda que possa ser destruída durante o tempo do corpo, ou ser transformada em fonte de angústia. Isto porque ela é, em sua própria natureza, em seu estado original, uma mera vontade; esta vontade é uma semente: a semente necessita do espírito de fogo ou de semear a alma na liberdade de Deus. Desta forma, cresce de semente à árvore, de onde a alma consome e satisfaz seu fogo-vida, a fim de que a alma se torne forte e transmita seu poder à raiz da árvore, fazendo com que cresça no Espírito de Deus, e até mesmo nas maravilhas da Majestade de Deus e floresça no Paraíso de Deus.

2. Ao descrever a fé podemos ser considerados estúpidos e obscuros, pois a Razão quer ver e tocar todas as coisas. Mesmo assim, iremos revelar claramente porque a fé e a dúvida são companheiras e estão como que conectadas por uma corrente, havendo um violento conflito no homem toda vez que ele visita este tabernáculo da vida terrestre, a menos que mergulhe tão profundamente em si mesmo, sendo capaz de introduzir o fogo da vida na liberdade de Deus: assim, ele fica como que morto para a vida da Razão. Não obstante, ele vive, vive para Deus, que é a altíssima e preciosa vida de um homem, raramente encontrada em neles, pois se assemelha à primeira imagem criada por Deus. Embora o que é mortal ainda se apegue a ele, a razão é como uma imagem morta, que pertence à dissolução, onde o verdadeiro homem não vive. Pois a verdadeira vida permanece no lugar oposto, e está em outro mundo, em outro Princípio, vive em outra fonte.

3. Compreendam da seguinte forma: a origem da vida humana é vista e conhecida, surge no ventre; sabe-se no que ela se qualifica e se movimenta, nas quatro formas - fogo, ar, água e carne. Apesar disto, em tal vida não há nada mais do que vida animal, pois que sua razão vem das estrelas; o sol e as estrelas fazem uma tintura nos quatro elementos, quando vem a razão e o poder-qualidade, assim como o prazer na dor. Mas isto está longe de ser a verdadeira vida humana, pois a razão natural não busca nada mais elevado que a si mesma, em suas maravilhas. Não obstante, há no homem um desejo e uma grande ânsia por uma vida melhor, mais elevada e eterna, onde tal tormento não exista. Embora a razão não compreenda e não veja este desejo, há na razão um mysterium que o prova e o conhece, de onde surge o desejar. Com isto, reconhecemos que este mysterium foi implantado já na primeira criação e é uma possessão própria do homem, assim como o desejo e o anseio são um apetite mágico. Além do mais, acreditamos que assim como este mysterium, estamos num lugar estranho, e que o mysterium não é encontrado no espírito deste mundo, pois este não o compreende e não o encontra. Podemos ver que Adão caiu violentamente e que este mysterium na vontade da alma é uma fonte oculta, revelada num outro Princípio. Acreditamos, mais que tudo, que este mysterium reside oculto no fogo, na fonte da angústia, e é revelado através da angustia da vontade. Observamos ainda, como o mesmo mysterium é mantido aprisionado pelo espírito deste mundo e como a razão da vida exterior tem o poder de adentrá-lo e frustrá-lo , não permitindo que o mysterium se atenha à luz, mas o encobre, a fim de que a força geradora (amor divino) não se manifeste, mantendo-se oculta no mysterium. Quando o corpo se dissolve, a vontade não tem nenhum outro corpo que possa revelar o mysterium; consequentemente o espírito da alma, ou o fogo espírito, permanece nas trevas, e o mysterium é eternamente oculto na alma, como num outro Princípio.

4. Reconhecemos, então, o mysterium como o reino de Deus, que está oculto na alma e que proporciona a ela um desejo ardente, para que se imagine neste mysterium, onde é magicamente impregnada no mesmo mysterium. Daí surge na alma a vontade de sair do fogo-vida e penetrar o mysterium de Deus. Se a alma eleva espiritualmente a vontade e a lança no mysterium, a vontade passa a ser impregnada no mysterium, pois tem o desejo ardente e adquire o corpo e a essência do mysterium, ou seja, a essência de Deus, que é incompreensível para a natureza. Assim, a vontade extrai a semelhança ou imagem de Deus para si mesma.

5. Veja então, que a vontade é adquirida do fogo da alma; ela é, de fato, enraizada na alma, e não há separação entre vontade e alma. A vontade se torna assim um espírito em Deus, uma veste da alma, a fim de que a alma na vontade se oculte em Deus, ainda que habite no corpo. A alma é na vontade ou na fé verdadeira e sincera uma filha de Deus, e habita em outro mundo.

6. Não se deve compreender esta vontade como sendo histórica, em que a Razão sabe que há nela um desejo por Deus, mas que mantêm este desejo aprisionado na fraqueza, não permitindo que a vontade saia da alma e penetre na vida ou no mysterium de Deus. Esta Razão forma opiniões e envolve a vontade na desilusão, com a desilusão, a vontade não pode alcançar o mysterium de Deus. Ela permanece, desta forma, na desilusão, ou bem escondida na alma, direcionada para algo futuro, na medida em que a Razão mantém a vontade como uma prisioneira no desejar da carne, na magia sideral, sempre dizendo: "Amanhã tu sairás em busca do mysterium de Deus. Na verdade, não há faculdade individual de descoberta: esta idéia é enganadora. Do mesmo modo, não existe liberdade na desilusão, em que a vontade é capaz de penetrar e ver a Deus, de forma que a Razão possa se imaginar realizando alguma coisa e agradando a Deus.

7. Não há caminho mais perfeito do que tirar a vontade da Razão, ao invés de fazer a vontade buscar a si mesma; mas se lançar totalmente no amor e na vontade de Deus, desprezando a Razão pelo caminho. Embora estes tenham sidos grandes pecados e vícios perpétuos, aos quais o corpo se entregou, deveríamos, pela vontade unicamente, superá-los, valorizando o amor de Deus muito mais do que a corrupção do pecado. Deus não é Aquele que recebe pecados, mas Aquele que recebe a obediência e a vontade livre. Ele não tolera o pecado junto de Si, mas sim uma vontade humilde que deixa a casa do pecado e que não mais deseja pecar, que se afasta para fora ou além da razão, e entra no Seu amor, como uma humilde criança obediente: esta criança Ele recebe, pois é pura. Mas se a vontade ainda permanece na desilusão, fica circundada por esta desilusão, ela não é livre. Observe que Deus é em si livre do que é mal, a vontade também deve ser livre, pois assim será a imagem, semelhança e a própria possessão de Deus; Como o Cristo nos ensina: "Todo aquele que o Pai me der virá a mim e quem vem a mim eu não o rejeitarei" (João 6.37).

CAPÍTULO III

SOBRE A PROPRIEDADE DA FÉ, COMO ELA EMERGE

DA VONTADE DO Desejar NATURAL PARA

PENETRAR A VONTADE LIVRE DE DEUS.

1. Compreendamos melhor, da seguinte forma: Sabemos e reconhecemos nas Sagradas Escrituras, assim como pela luz da natureza, que tudo procede do Ser eterno, o bem e o mal, o amor e a ira, a vida e a morte, alegria e tristeza. Não é por isso que podemos dizer que o mal e a morte vêem de Deus, pois em Deus não há morte e mal algum, e por toda eternidade nada do que é mal entra Nele. A fúria vem unicamente do fogo da natureza, onde a vida é encontrada como na magia, onde cada forma de anseio deseja e desperta um outro anseio. Como conseqüência, surge as essências da pluralidade, de onde maravilhas são geradas pela manifestação da eternidade em similitudes. É preciso dizer ainda, que na vontade de Deus é um desejo o que faz surgir a magia de onde floresce a pluralidade. Contudo, a pluralidade não é a própria vontade de Deus, esta é livre de todos os seres, mas no anseio da vontade a natureza é trazida à tona com todas as formas; assim, tudo surge do processo de desejo ou da magia eterna.

2. Sabemos que tudo aquilo que busca a vida, que se imagina no anseio e coloca sua vontade na natureza, é o filho da natureza e tem com ela uma única vida. Mas tudo aquilo que com sua vontade se afasta do anseio da natureza para aderir à vontade livre de Deus é conhecido e recebido pela vontade livre, é um espírito em Deus, e embora esteja na natureza, da mesma forma que a natureza foi gerada desde a eternidade na vontade de Deus, seu espírito-vida está fora da natureza, na Vontade-livre; por este intermédio, as maravilhas da natureza permanecem reveladas em Deus, ainda que não sejam o próprio Deus. Se o espírito da vontade da alma (a imagem) deixa a razão da natureza para adentrar a Vontade-livre de Deus, então o espírito da vontade é o filho de Deus, a natureza-espírito uma maravilha de Deus e a criatura se encontra introvertida em si mesma, como o próprio Deus. O espírito-razão ou sideral busca em sua magia, em seu centro de razão, as maravilhas da eternidade, com esse fim é que Deus criou a alma no corpo de outra natureza, embora a alma só seja apreendida na vida interior. O espírito da vontade busca a liberdade de Deus, onde é guiado no livre e divino mysterium pelo Espírito Santo, a fim de que a Divindade seja revelada no espírito da vontade, e na razão-espírito é revelada a magia da natureza com suas maravilhas.

3. Vemos então, que a alma é o centro onde o verdadeiro espírito da vontade, diferenciado da liberdade de Deus, passa a integrar esta liberdade divina, dentro do mysterium, possuindo também o espírito sideral através da conexão. Se a alma domina este espírito, não permitindo que opere nenhuma fraqueza, ela será capaz de conhecer as maravilhas siderais, que no espelho elemental foram feitas como substância, diante da Majestade de Deus e na vontade livre de Deus, a fim de que as maravilhas aparecessem na liberdade da Majestade Divina como uma semelhança da vontade de Deus. Não se deve pensar com isso, que a liberdade de Deus se mistura com as maravilhas da Natureza e com o que é semelhante, com intuito de ser Um. Não; Deus permanece eternamente livre, ele habita nas maravilhas assim como a alma habita o corpo. Quanto menos o corpo estiver ligado à alma ou ao fogo da luz, menos a Natureza estará ligada à Divindade. Ainda que o fogo seja um ser e tenha, desde a eternidade, se separado em duas partes, em fogo e luz, entendendo por fogo a fonte da natureza e por luz o mysterium do espírito-vida sem uma fonte, o fogo também é um mysterium.

4. Assim, compreendamos que isto também se aplica ao homem. A alma é o fogo da verdadeira vida humana, que Deus soprou com seu espírito, da natureza eterna ou do centro de Deus em Adão. O espírito gerado do fogo da alma, formado pelo espírito de Deus à sua própria imagem, possui o mysterium divino, de onde a vontade do amor de Deus é gerada; de onde surge a magia ou desejo, para que o espírito da vontade anseie à Deus. Quando a magia divina surge, ou sai do mysterium oculto na liberdade de Deus, é como uma ramificação ou um crescimento no reino de Deus. É algo que cresceu do mysterium de Deus e opera na vontade de Deus, revelando as maravilhas na sabedoria de Deus. Nunca, ainda que em Deus, algo novo foi gerado sem ser eterno na sabedoria de Deus, que não tenha número ou fundamento, mas só no espírito da alma, este infinito e e eterno mysterium é revelado para maior glória de Deus e da própria alma, ou seja, para a alegria eterna da criatura.

5. Desde então, a ânsia corrupta e terrestre se mistura com as fontes siderais; a alma, na dolorosa queda de Adão, se imaginou, com sua vontade, nas estrelas, e na ânsia terrestre, introduzindo em si mesma a magia contrária; sua vontade foi quebrada e a imagem divina destruída. A celeste imagem divina do homem tornou-se terrestre, afim de que a vontade correta se voltasse para o espírito deste mundo, razão pela qual são geradas as estrelas. Se faz necessário agora, para a verdadeira imagem de Deus, destruída e tornada terrestre, que se torne outra e renasça. Não haveria sido encontrado remédio algum para esta imagem, se o Verbo do centro de Deus, que é a própria vida de Deus, não tivesse se tornado homem e dado um novo nascimento em si próprio à pobre alma, cuja imagem estava corrompida. Com isto um novo socorro foi prestado à verdadeira imagem, senão ela teria sido eternamente roubada da liberdade e majestade de Deus.

6. Sendo as almas procedentes de uma, todas tem sido geradas a partir da raiz corrupta; contudo, desde que a nova vida regenerada no Cristo veio habitar a alma novamente, é preciso que lancemos nossa vontade na regeneração, através de Cristo. Pois em Cristo renascemos com nossas almas em Deus, alcançando mais uma vez a imagem. Depois da Queda, o mysterium em nossa alma, só permaneceu na magia da natureza cujo centro é um fogo. A imagem havia deixado a liberdade de Deus para adentrar uma outra magia, ou seja, o princípio externo. Ora, quando isto se quebra em pedaços no ser, a pobre imagem corrupta da alma fica nua, exposta, como uma criança perdida; a única coisa que ela pode despertar em seu próprio centro é a fonte do fogo ardente. Pois ela deixou o Verbo de Deus, ou o mysterium de Deus, para penetrar um espelho destrutível, o Espírito deste mundo, que tem um começo e um fim. É também por isso que o corpo da alma se tornou totalmente terrestre e uma oração à destruição e à morte.

7. Tendo Deus, através da graça, voltado seu amor a nós, dirigido a alma através de Cristo para a liberdade e enfraquecido o mysterium na imagem, a fim de que esta possa, mais uma vez, habitar em Deus ou no paraíso das maravilhas, se faz necessário que apartemos nossa vontade do outro centro, o da vida transitória, introduzindo-a na vontade livre de Deus. Para que tudo isto ocorra, não se faz necessário apenas uma história ou ciência, para que o homem possa dizer: "Eu acredito que seja...", Eu sei e Eu desejo", e continue com sua vontade mergulhada no princípio externo. Não, nas Escrituras vemos, "É preciso nascer de novo através da água e do Espírito Santo, para ver o reino de Deus" (Jo. 3.5). É preciso haver determinação, a vontade da razão deve ser quebrada, deve haver um movimento vivo da vontade que atravessa e luta contra a razão. E embora isto seja muito difícil para a alma, já que é muito corrupta, não há outro ou melhor remédio para ela do que se fazer de morta com toda sua razão e mente, se deixando envolver apenas pela misericórdia de Deus, a fim de que não haja mais espaço para a razão, para que Deus seja o mestre. Quando a vontade vence a razão, esta aparece como que morta, embora ainda viva. Ela se torna o servo da vontade reta, ainda que fora desta circunstância seria mestre. A vontade de Deus deve ser o mestre da razão, se é que a razão pretende realizar algum bem que subsista diante de Deus, pois este bem é feito na vontade de Deus e é extraído daquilo que tem seu princípio no eterno.

8. Ainda que não possamos afirmar que nossas obras ou conquistas durem para sempre, com certeza seu reflexo ou sua imagem resistirá, embora permaneça, verdadeiramente, no ser. No mysterium isto tem o nome de magia divina, diante da sabedoria de Deus, contra a qual só o princípio externo se quebra. Pois, na imagem humana, nada mais é quebrado do que o domínio externo nos quatro elementos, agrupados, mais uma vez, em um. Também todas as cores e formas dos quatro elementos são reconhecidos com tudo o que são gerados. Portanto, um dia final de separação foi apontado por Deus na Natureza, quando tudo deve ser testado pelo fogo, seja gerado na vontade de Deus ou não, quando cada princípio irá colher suas maravilhas. Muitas obras do homem permanecerão no fogo, pois não foram geradas na vontade de Deus; em Deus não entra nada impuro (Ver. 21.27; 22.15). Tudo o que é gerado da outra magia não é puro.

9. Temos um exemplo disto na terra, que é corrupta. Se perguntarmos: Por que? A resposta é: Embora o diabo tenha sido criado um anjo, com sua criação ele e sua legião passaram a ocupar o Enxofre, ou o centro da Natureza, de onde a terra foi, mais tarde, criada. Foi ele quem excitou a ira na Natureza afim de que a terra tivesse uma ânsia impura e diabólica, ainda que esteja fechada na morte e reservada para a putrefação. Ela será então testada no fogo eterno, e voltará àquele estado anterior à criação, chamado na magia eterna de natureza eterna.

CAPÍTULO IV

O QUE É O TRABALHO DA FÉ E COMO A VONTADE

IRÁ ACOMPANHÁ-LA E TORNAR-SE SUA GUIA

1. Desde então tudo o que é gerado na natureza é compreendido na vontade de Deus; compreendamos com isso que nada pode adentrar a vontade de Deus, a menos que seja gerado ou feito na vontade de Deus; compreendamos claramente que precisamos nos entregar à vontade de Deus com toda nossa razão e mente, trabalhar com nossas mãos no mundo, buscando o alimento da fome, mas não colocar aí toda a nossa vontade, nem mesmo desejar acumular bens terrestres: pois onde estiverem a nossa vontade e o nosso coração estará também o nosso tesouro. Se nossa vontade estiver na vontade de Deus, teremos o Seu grande mysterium, de onde este mundo foi gerado, como semelhança. Assim, possuímos ambos, o eterno e o perecível e ainda mais; trazemos as maravilhas de nossas obras para o mysterium eterno, pois elas buscam a vontade-espírito. Mas quando desviamos nossa vontade do eterno para o mysterium terrestre e consideramos o dinheiro nosso tesouro, a beleza do corpo a nossa glória, a honra e o poder a nossa jóia mais valiosa, então a nossa vontade fica prisioneira deste mysterium terrestre e nos agarramos somente ao espelho, não realizamos a liberdade de Deus. O espelho, que é o reino externo, será testado pelo fogo e a ira será separada do puro, pois a ira será uma queimação eterna.

2. Quando a razão se insere na mente da alma e em sua vontade-espírito, onde está a imagem de Deus e o verdadeiro homem dentro do espelho exterior, ou desejo hipócrita, de fato a imagem e o verdadeiro homem são feitos prisioneiros da razão e infectados com a magia exterior, que é aquele mesmo desejo hipócrita. A imagem usa esta substancialidade exterior, não só como uma mera vestimenta, trata-se de uma infeção e uma completa mistura. Pois, ainda que o fogo da alma não se mistura com o reino externo, a vontade-espírito da alma, que é a da magia, está misturada a ele, sendo a imagem de Deus destruída e transformada numa imagem terrestre, por onde o fogo-vida da alma permanece ardente, tendo uma imagem terrestre na vontade-espírito.

3. Quando o corpo se enfraquece e morre, a alma retêm sua imagem, que é a vontade-espírito. Ela está agora desligada da imagem corporal, pois na morte há separação. A imagem aparece então naquelas coisas que a vontade-espírito carregava consigo aqui, aquilo que a corrompia, já que possuem a mesma fonte. Aquilo que amou aqui, e que foi portanto seu tesouro e aquilo que a vontade-espírito adentrou; a imagem da alma também será confeccionada de acordo com essa vontade. Se durante sua vida um homem usou seu coração e sua mente com orgulho, esta mesma fonte irá sempre irromper na alma e na imagem, e está estará longe do amor e da bondade, que é a liberdade de Deus, não podendo assegurar ou possuir liberdade. Ao contrário, ela experimentará um tormento angustiante tão grande, na medida em que contínuas confecções se formaram, de acordo com as coisas terrestres que a vontade penetrou. Isto irá cintilar no fogo da alma e fazer com que nasça nela o desejo de passar pelo fogo, pela bondade de Deus, pois não pode criar outra vontade. Ela não pode penetrar a liberdade de Deus, o santo mysterium onde poderá obter uma outra vontade, ela vive só em si mesma. Ela não tem nada, nem pode almejar a nada, a não ser àquilo que tinha na vida interior e que permanece com ela. Isto também ocorre com o homem avarento que tem em sua vontade e imagem, a magia do desejo avarento. Ele sempre deseja ter muito para si e busca na vontade espírito, aquilo a que se associou na vida do corpo. Mas esta última o desamparou e seu ser não é mais terrestre, ele ainda carrega consigo a vontade e a pestilência terrestre, isto o atormenta tremendamente, mas ele não pode se apegar a mais nada.

4. Coisa pior ainda ocorre com a Falsidade, que o infeliz apregoou e com que amaldiçoou o falso homem pela sua opressão. Pois o que quer que tenha sido forjado na fraqueza foi causado por ele, segue à ele, pois foi forjado no mysterium da cólera. Portanto, a alma corrupta após a morte do corpo, cai nesta cólera e deve banhar-se nestas mesmas abominações. Se fosse possível usar a vontade para entrar no amor de Deus, ainda assim estas mesmas abominações e fraquezas a segurariam, pois produzem um desespero eterno, forçando a alma a se desesperar, renunciar à Deus e desejar unicamente surgir e viver naquelas abominações. Está passa a ser sua alegria: blasfemar contra Deus e seus santos, exaltando-se nas abominações, acima de Deus e do Reino dos céus, sem reivindicar ou ver nenhum dos dois.

5. Com isto, levamos o leitor a considerar o que é a vontade e a convicção, o mestre e o guia, que introduzem a imagem do homem, tanto no amor de Deus como na ira de Deus. Pois na vontade é gerada a fé verdadeira e reta onde permanece a nobre imagem de Deus; na fé, renascemos em Deus, através de Cristo, e obtemos novamente a nobre imagem que Adão perdeu e que Cristo trouxe novamente dentre a humanidade, com a vida de Deus.

6. A vontade falsa, mais que tudo, destrói a imagem, pois a vontade é a raiz da imagem, ela atrai o mysterium de Deus para dentro de si. O espírito do mysterium revela aquela bela figura e a reveste com o mysterium divino, que é a substancialidade de Deus; entendam por isso o corpo celeste de Cristo que nasceu de Deus através da amável e bem-aventurada virgem de sua sabedoria, e que enche o céu. Portanto, se nossa mente e vontade se concentrar nisto e se nossa vontade realmente desejar, ela se torna mágica e adentra o mistério. Se a vontade tiver fome, poderá comer do pão de Deus; assim, o novo corpo cresce sobre ela, é a árvore abençoada da fé Cristã, pois todo corpo preza a si mesmo. Quando a alma recebe o corpo de Deus, que é tão doce e justo, como poderia não amar aquilo que lhe é dado por seu próprio mérito, que é o lugar onde habita e vive, e de onde extrai o poder para se alimentar e se fortalecer.

7. Nenhum homem deve se enganar e permanecer fixo em sua falsidade e injustiça, sentindo-se confortável com uma fé histórica, pensando: com certeza Deus é bom, sem dúvida irá me perdoar; Vou acumular riqueza, desfrutá-la bem, deixar a meus filhos muita honra e prosperidade e mais tarde me arrepender. Tudo isto é decepção pura. O que mais se acumula é falsidade e o que mais se atrai é a injustiça. Mesmo que isto seja feito com a melhor intenção e da forma mais correta, continua sendo terrestre, pois "tu afundastes teu coração e tua vontade num vaso terrestre, tu cobristes tua nobre imagem e infectastes a santidade que ela continha. Além do mais, tu deixastes como herança a teus filhos apenas o orgulho, a fim de que eles também coloquem sua vontade-espírito apenas nisto. Tu ainda pensas estar fazendo o bem a ti e a teus filhos, mas fazes a ti e a eles o pior". A vida exterior deve, verdadeiramente ter sustentação e não passa de um tolo aquele que dá o seus bens a perder. Mas muito mais tolo é aquele que se torna um homem fraco com os seus bens, colocando seu coração neles e levando muito mais em conta o prazer temporal, transitório do que o bem eterno que não tem fim.

8. A vida externa deve, verdadeiramente, ter sustentação; é tolo aquele que, voluntariamente, coloca seus bens a perder. Mas, mais tolo ainda é aquele que se torna mau por causa de seus bens, colocando seu coração neles, levando mais em conta o prazer temporal e transitório do que o bem eterno e duradouro, que não tem fim. Aquele que socorre os pobres atrai sobre si muitas bênçãos, pois estes desejam-lhe tudo de bom e oram a Deus para que Ele possa abençoá-lo em corpo e alma. Este desejo e benção entram, com o doador, no mysterium que o rodeia e o segue como uma boa obra nascida em Deus. Este tesouro o homem leva consigo, o terrestre não. Pois quando o corpo morre a imagem entra no mysterium, ou seja, ela é revelada no mysterium de Deus, já que durante o período da vida terrestre o princípio externo foi o seu revestimento. Com a morte do corpo este revestimento cai e o mysterium divino aparece na imagem e dentro dele toda boa ação e obras geradas pelo amor na vontade de Deus.

9. O desejo e a oração de todos os bons filhos de Deus permanecem no mysterium e os unem à imagem, pois os filhos dos pobres a quem ajudaram em suas necessidades e atribulações enviaram sua vontade, em suas orações, ao mysterium de Deus e ali se juntaram ao seu Consolador e libertador, abrindo-lhe um caminho no mysterium divino. Assim, quando este benfeitor entra no mysterium e sua vida terrestre é eliminada, todas as coisas são reveladas, se juntando umas as outras e com a vontade que as direcionou.

10. Tudo isto será reservado para o julgamento de Deus Espírito Santo no mysterium, quando cada homem irá colher o que tiver plantado aqui neste campo. Tudo irá então florescer numa nova terra celeste, em que o homem irá cobrir sua imagem divina com o corpo do mysterium perfeito de Deus; e diante dele, diante de sua imagem corporal, verá sua retidão e compreenderá porque é tão justo. Ele conhecerá sua causa, regozijar-se-á eternamente e modelará sua canção de louvor à honra e magnificência de Deus. Por outro lado, a multidão ímpia terá desprezo, inveja, orgulho, malícia; amaldiçoará os pobres em seu mysterium se unindo na ira, e estes irão segui-la. Assim, sempre saberão a causa de seu tormento e serão portanto eternos inimigos de Deus e de Seus filhos.

CAPITULO V

PORQUE O DESCRENTE NÃO É CONVERTIDO; QUAL É A

PARTE MAIS DOLOROSA DA CONVERSÃO; SOBRE OS FALSOS

PASTORES; COMO DEVEMOS ENTRAR NO REINO DE DEUS; SOBRE

A DESTRUICÃO DO REINO DO DEMÔNIO; SOBRE AS TRÊS

FORMAS E O QUE HERDAMOS DE ADÃO EM CRISTO.

1. A multidão descrente não pode, agora, apreender tudo isto, porque não há neles a vontade que deseja compreender; o ser terrestre os mantêm atados, a fim de que não adquiram uma vontade no mysterium de Deus. Diante de Deus eles são como os mortos, não há o sopro da vida divina neles. Nem eles tampouco o desejam, pois estão trancados no mysterium da ira de Deus, a fim de que não conheçam a si mesmos. Não foi Deus quem fez isto a eles, mas eles mesmos penetraram e se afundaram neste estado, por sua própria vontade-espírito; desta forma, correm como homens loucos. Ainda que o tesouro esteja oculto dentro deles, no centro, no princípio divino e ainda que possam, muito bem, superar o ser terrestre a fraqueza e penetrar a vontade de Deus. Eles permitem, intencionalmente, que a ira os tomem, pois o orgulho e a honra própria os satisfazem perfeitamente, e é isto que os aprisionam.

2. Mas após esta vida, não há mais remédio para eles. Quando o fogo da alma é exposto e ardente ele só pode ser apagado por nada menos que a bondade de Deus, ou seja, pela água da vida eterna no mysterium de Deus. Mas ninguém se preocupa com isto, pois há um grande abismo entre eles, ou um princípio inteiro. Mas nesta vida, enquanto a alma ainda nada e queima no sangue, tudo é possível, pois o Espirito de Deus voa nas asas do vento. Deus se tornou homem, o Espirito de Deus penetrou a alma com a vontade, ele deseja a alma, ele coloca sua magia em direção à alma; a alma precisa unicamente abrir a porta e ele irá entrar, voluntariamente, para desvelar o nobre grão da árvore da fé Cristã. Esta é porém, a parte mais dolorosa, a mais difícil de ser compreendida pelo homem: a necessidade de ter o espírito de sua vontade guiado para fora de seu tesouro terrestre, fora do orgulho, da avareza, da inveja, da ira e da falsidade, que ameaça o Espírito de Deus. Sua boca não pode ser um dissimulador e nem a sua vontade e seu coração permanecer fixo no mysterium terrestre: ele deve ser sério desde o fundo de sua alma e de seu coração; a vontade deve se voltar para o mysterium divino, chamado o amor de Deus, a fim de que o Espírito de Deus possa ter espaço e lugar nele para soprar a pequena centelha divina. Não há outro remédio e o fingimento não serve para nada.

3. Um homem pode decorar as Escrituras e se sentar a vida inteira numa igreja, mas mantém na imagem de sua alma um homem bestial e terrestre que só tem falsidade em seu coração, sua vontade dissimulada não serve para nada. Um sacerdote que age externamente de acordo com o mysterium de Deus, mas que não tem a imagem de Deus dentro de si, e ainda se sustenta unicamente na honra e avareza, é um recinto para o demônio, um dos mais egoístas, pois é apenas um impostor que se utiliza do mysterium de Deus, além de ser um ilusionista sem poder. Ele mesmo não possui o mysterium de Deus, como então irá oferecê-lo aos outros? Trata-se de um falso pastor, e um lobo entre as ovelhas. Pois todo aquele que carrega o mysterium de Deus, ou seja, que o despertou e dele se rodeia, é guiado pelo espírito de Deus, ele é o sacerdote de Deus, pois prega a partir de Deus. Nenhum homem pode ensinar corretamente, a não ser que ensine a partir do mysterium de Deus. Mas como irá ensinar aquele que esta fora dele? Não irá ensinar a arte e razão terrestre? E no que isto afeta o mysterium de Deus? Ainda que a razão seja algo nobre, sem o Espírito de Deus ela é cega. Pois o Cristo diz: "Sem mim não podes fazer nada" (Jo 15.5). "Aqueles a quem o espírito de Deus guia são os filhos de Deus (Rom. 8.14). Aquele que sobe ao aprisco por outro caminho e não através do espírito de Cristo é um ladrão e um assassino e veio apenas para roubar em benefício próprio (Jo 10.1). Ele não alimenta as ovelhas, mas as devora como um lobo.

4. É desta forma que devemos compreender a árvore da fé Cristã. Ela deve ser viva e não como uma história ou ciência morta. O verbo da vida deve dar à luz um homem na imagem, a fim de que a alma possa conter a imagem de Deus, ao contrário não será filho de Deus. Não há porque ser hipócrita ou renovar esperanças, pois enquanto o homem carregar unicamente a imagem terrestre em sua alma, ele estará fora do mysterium de Deus. Ainda que pense: Eu irei, de fato me converter um dia, mas antes irei juntar o suficiente para mim, para que não fique necessitado e para que os negócios terrestres não fiquem no meu caminho mais tarde. Não, este é um truque demoníaco. Mas é através da perseguição, da cruz, da tribulação, do desprezo e do desdém que devemos adentrar o reino de Deus. O demônio mantém seu controle na imagem terrestre e ridiculariza os filhos de Deus em seu trono de orgulho, quando estes tencionam escapar de suas garras. Portanto, a multidão fraca serve o demônio e o ajuda a realizar sua obra.

5. O homem que deseja chegar à Deus não deve levar nada disso em conta. Deve considerar que está num país estranho, entre assassinos e que é um peregrino a caminho de sua verdadeira terra natal. Ele cai em meio aos assassinos que o atormentam e o roubam, mas se ele suporta o bastante para preservar sua nobre imagem, suas posses são suficientes; como retorno ele receberá o mysterium celeste, onde tudo reside e do qual este mundo não passa de um espelho. Tolo é aquele que toma o reflexo de um espelho como um ser substancial, pois o espelho se quebra e seu amante fica privado de sua existência. É como alguém que constrói sua casa na areia perto das águas que, aos poucos, a levam embora. O mesmo acontece com a esperança terrestre.

6. Ó, filho do homem! Nobre criatura, não ceda ao poder. Irá te custar o reino eterno. Busca a ti mesmo e te encontrarás, mas não no reino terrestre. O homem encontra realmente, o reino de Deus, quando penetra e se encerra no divino e celeste mysterium. Toda a pompa deste mundo é nada se comparada com a beleza celeste, não vale a pena que um homem fixe seu amor nela, mesmo quando se chega à conclusão de que Deus também a tenha criado.

7. Compreendam-me: o homem exterior manifesta as maravilhas da natureza exterior, ou seja, no mysterium exterior, tanto fora da terra como acima da terra. Tudo o que as estrelas possam fazer e que a terra contém em si, tudo isto o homem tem que expressar em maravilhas, formas e seres, de acordo com o modelo eterno, como é visto na sabedoria de Deus antes dos tempos do mundo. Mas sua vontade não deve ser colocada aí, e nem considerar tudo isto seu tesouro, deve apenas usar estas maravilhas para seu ornamento e deleite. Com seu homem interno, deve trabalhar no mysterium de Deus, então o espírito de Deus também irá auxiliá-lo na busca e encontro daquilo que lhe é destituído.

8. Desde a dolorosa queda, temos sido tão corruptos que nossa mente voltou-se do mysterium celeste para o mysterium terrestre, ou espelho. Desta forma, metade de nós está morta. É fundamental portanto, que tiremos nossa mente e vontade do brilho terrestre e busquemos, em primeiro lugar, a nós mesmos antes do adorno terrestre, e que aprendamos primeiro a reconhecer onde está a nossa casa, e não tornar nossa mente terrestre.

9. Pois o homem, embora esteja na imagem de Deus, ainda possui uma vida ternária. Mas quando perde a imagem de Deus, fica apenas com uma vida binária, sendo a primeira aquela da alma que surge no fogo da natureza eterna. Ela permanece liderando em sete formas, todas de acordo com o espírito da natureza. A segunda vida permanece na imagem que procede da fonte da natureza eterna, chamada o fogo da alma, cuja imagem permanece na luz, numa outra fonte e tem seu espírito vivo, assim como o fogo e a luz. Pois a fonte da luz não é a mesma fonte do fogo, ainda que a luz proceda do fogo; e por fonte da luz compreendemos o espírito suave, puro e agradável e por fonte do fogo a sua causa. Vemos que do fogo surge o ar, que é o espírito, e sabemos que o ar está nas quatro formas; um seco, de acordo com a ferocidade do fogo, e um úmido como a água da atração adstringente. Um terceiro é suave, procedente da luz e o quarto é procedente do terror do fogo feroz.

10. Em segundo lugar, compreendemos a outra água no terror-brando, na qual a fonte afunda através da mortificação e na morte se torna como se não fosse nada, pois no nada a liberdade eterna, que é o abismo eterno da eternidade, é alcançado. Quando a luz impalpável está afundando e olha para a eternidade, afundando cada vez mais, o poder da luz desabrocha na luz e isto é vida vindo da morte enterrada, pois a ira do fogo permanece na fonte feroz ,da água feroz e não adentra a morte. Isto não pode ocorrer porque pois a ferocidade é a vida almejante mais forte que não pode morrer e não pode atingir a liberdade eterna, pois é chamada e permanece sendo a vida da natureza, para sempre. Ainda que também se possa encontrar uma natureza na vida da luz, ela não é dolorosa ou hostil como na origem da natureza, com relação à nomenclatura que Deus dá a si mesmo: a de Deus irado e ciumento. Pois na fonte da luz a água que através da morte afundou na liberdade, se torna uma fonte e água da eterna vida de júbilo. Onde o amor e a bondade fluem eternamente para cima, não afundando mais, mas desabrochando e sendo um paraíso. O movimento gerado na fonte da água é conhecido como Elemento, este é o elemento puro no mundo angélico. A causa do fogo na luz é o eterno firmamento onde o eterno conhecimento de Deus é manifestado em sabedoria, do qual podemos reconhecer uma similitude no firmamento exterior e nas estrelas. Compreendemos que a luz, em todas as formas, é mestre, pois ela possui bondade e é uma vida gerada através da morte amarga, ou da fonte de angústia na queda. O poder da luz desabrocha na luz e isto significa vida surgindo da morte putrefata, pois a ira do fogo permanece na fonte ígnea da água impetuosa que não penetra a morte. Isto não seria possível, pois a impetuosidade é a vida forte que não pode morrer e não pode alcançar a liberdade eterna, já que é chamada de vida natureza, permanecendo assim para que sempre se encontre natureza na vida luz, não se trata de nada hostil ou doloroso como na origem da natureza, com referência ao que Deus chama a si mesmo de Deus irado e ciumento. É que na fonte da luz, a água que, através da morte encontra a liberdade, torna-se uma água fonte de vida e alegria, onde o amor e a bondade fluem eternamente para cima. Não se trata mais de afundar, mas de um desabrochar chamado paraíso. Este mover-se para fora da fonte da água é conhecido como Elemento, um elemento puro no mundo angélico. O fogo na luz é o eterno firmamento em que o conhecimento eterno de Deus é manifestado na sabedoria, da qual vemos uma semelhança no firmamento externo e nas estrelas.

11. Percebemos assim, dois mundos, um dentro do outro, sendo que um não compreende o outro; um na ira da natureza feroz, na água da venenosa e angustiante fonte, onde habitam os demônios; outro na luz, onde a água da luz se afundou e ressurgiu da angústia, rumo a liberdade eterna; isto a água venenosa não pode conseguir ou se apoderar; a única coisa que separa estes dois mundos é a morte, dividindo-os em dois princípios, em duas vidas: a vida da ira e a vida do amor, onde a vida é conhecida como a verdadeira vida em Deus. É por esta razão que Deus se tornou homem, pois com Adão, saímos desta (luz) vida e penetramos na vida (mundo) exterior. Ele teve que, através de Sua morte, nos trazer de volta da fonte feroz, fora da vida de angústia e voraz, passando pela morte, rumo a vida de luz e de amor. Embora o portão da morte estivesse, de fato, fechado ,na ira da alma humana, (já que a alma estava na fonte de angústia na natureza interna, no fogo do veneno, que é a água da angústia), o Senhor Cristo quebrou o lacre da morte, e com sua alma humana desabrochou da morte, na luz de Deus e de sua vida-luz mantém a morte capturada. Isto tornou o demônio um escárnio. Pois com este lacre, Lucifer pensou ser mestre e príncipe todo poderoso da ira; mas quando o lacre foi quebrado, o poder da Divindade na luz destruiu o seu reino. Lá se manteve um servo capturado, pois a luz de Deus e a água da bondade são a morte para ele, pois através destes dois elementos a ira é eliminada.

12. Desta forma, a luz e o amor penetraram a ira com o elemento paradisíaco e a água da vida eterna, a ira de Deus foi extinta. Por esta razão Lucifer permanece consigo mesmo, como uma fonte de fogo angustiante e repleta de ira, em que seu corpo é um veneno e uma fonte de água venenosa. Ele perdeu a confiança do fogo de Deus, caindo na matriz da natureza eterna, a áspera adstringência que gera as trevas eternas. Ali ele leva adiante o governo externo no Mercúrio angustiante; não passa de um desgraçado ou banido, aquele que em sua origem foi um príncipe. Falamos não mais do que um vilão executor e infame ,que na ira de Deus tem que ser como um carrasco que pune o mal quando é ordenado pelo seu Senhor. Ele não tem poder para nada mais além disso, embora ainda seja um enganador que gostaria de por as mãos em muitas coisas, para que seu reino se tornasse grande: ele quer ter muito para não ser um escárnio. Da mesma forma que pensa uma prostituta, "se houver muitas prostitutas pelo menos eu não serei a única, mas como tantas outras", ele também deseja uma grande tribo para que assim possa zombar de Deus. O demônio sempre culpa a Deus por sua queda, dizendo que a ira de Deus o sugou e o confiou a tal vontade de orgulho, incapaz de resistir. Ele pensa que se pelo menos pudesse levar muitos consigo, muitos daqueles que fazem o mesmo que ele, seu reino cresceria e todos poderiam amaldiçoar a Deus, tentando se justificar. Sua força e seu deleite em sua obscura e amarga angústia, é nunca poder eliminar o fogo de dentro de si e voar sobre os tronos. Ele ainda se diz senhor e rei, e ainda que seja mau, é o senhor de sua legião, na ira de suas criaturas. Mas com a ira fora de suas criaturas, ele não tem poder de agir, ali tem que permanecer como um cativo impotente.

13. É preciso compreender que, a vida humana tem duas formas, uma de acordo com o fogo da natureza, outra de acordo com o fogo da luz, onde queima o fogo do amor, onde a nobre imagem de Deus aparece. A vontade do homem deve penetrar a vontade de Deus; assim, ele passa pela morte de Cristo e com a alma de Cristo penetra a liberdade eterna de Deus, na vida de luz, permanecendo ali com Deus em Cristo. A terceira forma de vida é a vida exterior criada pelo mundo, pelo sol, estrelas e elementos; o espírito de Deus soprou esta vida nas narinas de Adão, com o espírito do mundo maior, quando ele também se tornou uma alma exterior, que nada no sangue e na água e queima no fogo ardente e exterior, ou calor.

14. Esta vida exterior não penetra a imagem, ou a vida interior; nem a imagem permite que ela penetre a luz interior (que brilha através da morte e com seu poder desabrocha na liberdade eterna) pois a vida exterior é apenas uma similitude da vida interior. O espírito interior deveria apenas manifestar as maravilhas eternas no espelho exterior (como a sabedoria de Deus estava por traz da magia divina) e trazê-las a um espelho figurativo, ou seja, um espelho maravilhoso para a honra de Deus e satisfação do homem interior, gerado de Deus. Mas sua vontade não deveria penetrá-lo trazendo as maravilhas externas para a imagem, como reconhecemos agora com grande pesar, que o homem traz para sua mente e imagina um tesouro terrestre que destrói a imagem pura de Deus de acordo com o segundo princípio.

15. Em seu atual estado, a vontade-espírito do homem penetra o ser terrestre introduzindo ali o seu amor; sua imagem reside no ser terrestre, ou seja, penetra o tesouro ou vaso terrestre. A imagem em tal imaginação, também se torna terrestre e passa novamente pela morte, perde Deus e o Reino dos Céus, pois sua vontade-espírito permanece fixo no seu amor pela vida externa. A vida externa precisa morrer e ser rompida, a fim de que o homem crie a imagem tal como possa parecer o reino interno, seu espírito-vontade irá então, permanecer com seu amor nas maravilhas externas; com a morte da vida exterior ele irá trazer estas imagens diante do julgamento de Deus. Ali o espírito-vontade terá que passar através do fogo e pelo fogo sua imagem será testada. Tudo o que for terrestre deve ser queimado e banido da imagem, pois esta deve ser pura, sem manchas. Assim como a luz subsiste no fogo, a vontade-espírito também deve subsistir no fogo de Deus, e se ela não pode passar desobstruída através do fogo de Deus e através da morte, esta mesma imagem da alma será lançada nas trevas eternas.

16. Esta é a dolorosa queda de Adão, ele colocou sua vontade-espírito na vida exterior, no princípio externo, na ânsia falsa, e se imaginou na vida terrestre. Com isto, saiu do paraíso que, através da morte, desabrocha no segundo princípio, no Exterior, ele penetra então a morte. Teve portanto que morrer, para que sua imagem fosse destruída. Isto nós herdamos de Adão. Mas herdamos também a regeneração do segundo Adão, o Cristo, devemos penetrar a encarnação de Cristo e ir com ele em sua morte, e com ele, da morte, desabrochar no mundo paradisíaco na eterna substancialidade da liberdade de Deus.

CAPÍTULO VI

O QUE A LUXÚRIA PODE PROVOCAR; COMO QUE

CAÍMOS COM ADÃO E RENASCEMOS COM CRISTO;

SOBRE A DIFÍCIL TAREFA DE SER UM VERDADEIRO CRISTÃO.

1. Compreendemos que tudo ocorreu por causa da luxúria; a corrupção surgiu da luxúria, e continua surgindo. A luxúria é um imaginar em que a imaginação se insinua em todas as formas da natureza, a fim de que fiquem impregnadas com a coisa da qual surge a própria luxúria. Com isto compreendemos o espírito exterior do homem, que é similar ao interior. Ele cedeu à luxuria diante da imagem pura e por causa disto, fixou sua imaginação no interior, ocasião em que foi tentado. Como ele não caiu morto imediatamente, deu espaço em sua vontade-espírito para o exterior. Assim o exterior encontrou abrigo no interior e acabou por se tornar dono da casa, obscurecendo o interno, a fim de enfraquecer a imagem pura. A imagem pura caiu entre assassinos, ou seja, entre os espíritos cruéis da natureza e da origem da vida. Isto manteve a imagem cativa e extraiu dela o manto do paraíso, deixando-a meia morta.

2. Houve a necessidade de um Samaritano, o Cristo. Foi por isto que Deus se tornou homem. Se a ferida pudesse ser curada através de uma palavra ou uma palavra de perdão, Deus não teria se tornado homem. Mas Deus e o paraíso estavam perdidos e mais que tudo, a nobre imagem havia sido destruída e desolada; ela precisava ser regenerada a partir de Deus. Portanto, Deus veio com seu Verbo que é o centro da vida de luz, e se tornou carne, a fim de que a alma pudesse novamente receber uma morada paradisíaca e divina. Compreenda que como a alma de Adão havia aberto a porta das essências ígneas, deixando entrar a essência terrestre (cuja fonte se insinuou na imagem paradisíaca tornando-a terrestre), então o coração de Deus abriu a porta das essências de luz e cobriu a alma com um corpo celeste, e assim as essências do corpo santo foi imaginado diante da imagem, diante das essências da alma. A alma foi então, mais uma vez impregnada, para que com sua vontade-espírito entrasse através da morde na vida-paraíso. Veio então a tentação de Cristo; Ele foi tentado para se verificar se a alma comeria do Verbo do Senhor, podendo, através da morte, penetrar a vida de Deus. Isto finalmente se realizou na árvore da cruz, quando a alma de Cristo passou pelo fogo da ira, pela fonte externa, pela morte e desabrochou no mundo paradisíaco santo, onde Adão foi criado. Com isto, nós homens fomos auxiliados mais uma vez.

3. Portanto, se faz necessário, tirarmos nossa vontade, mente e coração de todas as coisas terrestres e colocá-los no sofrimento, no processo de morte, na morte e ressurreição de Cristo; crucificar continuamente o velho Adão com a morte de Cristo e morrer, continuamente, com o pecado na morte de Cristo; com Ele ressurgir sempre da angustia da morte num novo homem, desabrochando na vida de Deus. Não há outro remédio senão este. É preciso morrer para o mundo terrestre em nossa vontade, e renascer, continuamente, na fé para o novo mundo na carne e sangue de Cristo. Devemos nascer da Carne de Cristo se é que pretendemos ver o reino de Deus.

4. Não é nada fácil ser um verdadeiro Cristão, é uma das coisas mais difíceis. A vontade deve se tornar campeã, lutando contra a vontade corrupta. A vontade deve sair da razão terrestre e mergulhar na morte de Cristo, na ira de Deus e como uma valiosa campeã, interromper o poder da vontade terrestre. Para tanto, é preciso ousar de tal forma que a vontade interrompa a vida terrestre no homem; que ele não desista até que tenha interrompido sua vontade terrestre. Esta é, de fato, uma guerra onde dois princípios lutam para obter domínio. Não há dúvida: tem que haver determinação na luta pela coroa cavalheiresca, e nenhum homem a conquista se não for vitorioso. Ele tem que interromper o poder da vontade terrestre, apesar de ser incapaz de fazê-lo com sua própria força. Mas, se ele se retirar da razão terrestre com sua vontade interna, ele irá mergulhar através da morte de Cristo, através da ira de Deus, no mundo paradisíaco, na vida de Cristo, apesar de toda oposição do Espírito das Trevas. É preciso tornar sua vontade como que morta; assim irá viver para Deus e mergulhar no amor de Deus, embora ainda viva no reino exterior.

5. Mas eu falo da coroa cavalheiresca que o homem irá receber no éden assim que nele penetrar. Lá, a nobre semente está plantada e o homem recebe o mais precioso bem do Espírito Santo que passará a guiá-lo e a orientá-lo. Mesmo que, neste mundo, ele tenha que caminhar num vale de trevas onde o mal e a fraqueza do mundo sempre o ataquem e freqüentemente lançam o homem exterior em abominações encobrindo assim, o nobre grão de semente de mostarda; ainda assim, o Espírito Santo não permitirá que ele seja recapturado, mas que desabroche, e que cresça dali uma árvore no Reino de Deus, não importa todo o barulho e armadilhas do demônio e de seus seguidores. Quanto mais a nobre árvore de pérolas for podada, mais vigorosa e potente ela crescerá. Ela não se deixará ser suprimida, mesmo que isso custe a vida exterior.

6. Portanto, minha cara alma, investigue corretamente a árvore da Fé Cristã. Ela não pertence a este mundo. Ela deve estar, de fato, dentro de ti, mas tu e a árvore devem estar com Cristo em Deus, de forma que este mundo apenas paire sobre ti, assim como pairou sobre o Cristo. Que não se entenda com isto, que este mundo não vale nada e que não tenha proveito diante de Deus. É o grande mysterium e o homem foi criado neste mundo como um sábio administrador, para que pudesse desvendar todas as suas maravilhas (que se encontram eternamente no enxofre, de onde foi criado este mundo, suas estrelas e elementos) e dar a elas formas, corpos e imagens, de acordo com sua vontade, para sua satisfação e glória.

7. O homem foi criado inteiramente livre, sem lei alguma. Ele não tinha outra lei senão a lei-natureza, pela qual não podia misturar um elemento com outro. O homem interior não deveria permitir que nada terrestre penetrasse seu interior, mas deveria governar poderosamente o princípio externo. Nunca a morte e sua agonia deveriam ter penetrado o homem, nem os quatro elementos externos deveriam tê-lo tocado. Pois a nobre imagem que deve subsistir no fogo, é a mesma que deve governar todo o homem, através dos três princípios, e governar tudo, e tudo preencher com a fonte do paraíso.

8. Mas como isto não pode ser e a carne se tornou terrestre, devemos agora ser gerados na fé, já que a vida terrestre, de fato, encobre a verdadeira vida. Devemos portanto vestir o correto traje da Esperança, colocar nossa vontade na esperança e sempre trabalhar na árvore da fé, para que ela dê seus frutos, o abençoado amor para com Deus e nossos semelhantes. Um homem deve ser bom, não só por sua causa, mas também para que com seu exemplo e vida possa reparar seu semelhante. É preciso considerar que ele é uma árvore no reino de Deus, podendo carregar o fruto de Deus, crescer no campo de Deus, para que seu fruto seja colocado na mesa de Deus, e para que ele possa revestir suas obras e maravilhas com o verdadeiro amor, caminhando no amor que pôde trazê-lo para o reino de Deus. Pois Deus é um espírito, e a Fé também é um espírito em Deus e Deus se tornou homem em Cristo. O espírito de Fé também se fez homem em Cristo. A vontade-espírito vive em Deus, pois é um só espírito com Deus, e com Deus opera obras divinas. Ainda que a vida terrestre encubra o homem, a fim de que ele não conheça as obras que gerou com a fé, com a destruição da vida terrestre elas se manifestarão, pois a esperança é seu santuário e um mistério no qual as obras da fé são conhecidas e preservadas.

CAPÍTULO VII

COM QUE FINALIDADE ESTE MUNDO E TODOS OS SERES FORAM CRIADOS,

COM RELAÇÃO A DOIS MISTÉRIOS ETERNOS; SOBRE O TREMENDO

CONFLITO CRIADO NO HOMEM PELA IMAGEM, E SOBRE ONDE

ESTÁ A ÁRVORE DA FÉ CRISTÃ, COMO CRESCE E DÁ SEUS FRUTOS.

1. Como o homem possui uma vida ternária, cada vida é um mysterium para a outra; cada uma deseja a outra. É com este fim, que o mundo e todos os seus Seres foram criados, pois a essencialidade divina deseja o espelho ou a similitude. Este mundo é uma similitude, de acordo com o ser de Deus, e Deus é revelado numa semelhança terrestre. Pois, as maravilhas do segredo oculto podem não ser reveladas no mundo angélico, na origem-amor. Mas neste mundo, onde o amor e a ira estão misturados, onde há uma genetrix binária, sim. Pois todas as coisas se originam da raiz ígnea, mas são rodeadas pela água da doçura, a fim de se tornar um ser de amor. Mas, já que no mundo angélico o fogo não é conhecido, uma vez que o centro da genetrix permanece na luz e é a palavra de Deus, as maravilhas da natureza não podem se manifestar, a não ser por uma magia espiritual, ou seja, precisam ser vistas na sabedoria de Deus. Mas como isto é quase impossível para os anjos e para as almas dos homens assegurar, e como Deus quer ser conhecido dos anjos e dos homens, o mundo angélico anseia que as grandes maravilhas os conheçam, pois desde a eternidade estão na sabedoria de Deus. Na similitude terrestre isto ocorre em substância, formas e imagens, todas de acordo com as essências eternas do centro da natureza, a fim de que assim as maravilhas possam resistir para sempre. Não essencialmente, mas em figuras, imagens, similitudes e formas. A magia, de acordo com a vontade geradora, está no centro das maravilhas, pois foi certa vez despertada do fogo, mas ela será engolida novamente no mysterium e permanecer como uma vida oculta. Portanto, todos os seres devem se manifestar como uma imagem no mundo angélico, mas somente aqueles que na vontade de Deus foram inseridos no mysterium. Pois há dois mistérios eternos, um no amor, outro na ira. Onde quer que a vontade-espírito se insira com suas maravilhas, lá estará também todas as suas obras e maravilhas.

2. Da mesma forma portanto, precisamos saber que o externo deseja veementemente o interno, pois tudo se volta para o centro ou origem, aspirando a liberdade. Pois, no fogo da natureza há angústia e tormento; ora, a formação ou imagem da bondade na fonte do amor deseja ser livre, e ainda não pode ser livre na fonte das essências ígneas, até chegar o tempo em que as fontes se dividirão na ruptura: então cada uma passará para seu mysterium. Da mesma forma, o fogo quer ficar livre da água, pois a água é também a morte do fogo, e também um mysterium para ele. Vemos aqui, como a água mantém o fogo cativo, ainda que não haja mortificação no fogo, mas somente um mysterium, como pode ser visto quando ele rompe na água e se manifesta, quando se revela do centro de sua geração. Isto pode ser observado na iluminação, e também reconhecido numa pedra, que é água. Vemos contudo, como que todas as formas da natureza desejam a luz, pois neste desejo é gerado o óleo em que a luz se torna conhecida, ela que tem origem na bondade.

3. Nossa vida deve ser assim, conhecida de nós, ou seja, que em nós o centro do fogo permaneça aberto, pois a vida queima no fogo. Consideremos então, o desejo pelo amor que tem origem na palavra da vida, no mundo angélico onde o coração de Deus com seus desejos, permanece voltado para nós com sua concepção, que também nos atrai para o mysterium divino.

4. É preciso ainda considerar o reino mágico deste mundo, que também queima em nós e nos atrai veementemente para suas maravilhas, pois deseja se manifestar. O homem foi criado para este fim: revelar o mysterium e trazer as maravilhas à luz e à forma, de acordo com a sabedoria eterna. Sabendo que este é o seu papel e que assim queima num fogo ternário, o verdadeiro espírito, onde a imagem angélica habita, possui uma grande inquietação e corre grande perigo, pois caminha numa via bastante estreita e possui dois inimigos que lhe atraem continuamente, cada um deles deseja estar na imagem e introduzir ali sua fonte. Trata-se do fogo interno e do fogo externo; o reino interno da ira e o reino terrestre externo do espelho. Assim, a verdadeira imagem permanece no meio, comprimida. Pois o reino interno deseja manifestar as maravilhas através do reino externo, mas por ser bastante astuto o reino externo esquiva-se do reino interno, se contendo no meio, ou na imagem, que permanece na liberdade de Deus, deixando-se rodear pela imagem. A imagem tudangústia, o que seria a sua interrupção. Ele sempre pensa que o espaço deste mundo é seu reino; que ali ele não sofrerá outra imagem. Ora, a nobre imagem cai em sofrimento, tribulações, angústia e aflição, e neste ponto um grande conflito ocorre, pela luta de conquistar a coroa cavalheiresca da imagem de Deus. Assim surge a oração para que a imagem possa sempre sair, com ela, do ser terrestre, e também fora do orgulho, das abominações infernais, que penetram continuamente a vida de Deus e seu Amor. Desta forma a verdadeira imagem mata continuamente o Adão terrestre assim como o abominável mal do orgulho; ela deve permanecer sempre como uma campeã. A coisa mais necessária para a imagem é se envolver de paciência, se atirar à cruz e sempre brotar no amor, que é a sua espada, com a qual mata o mal e se retira da natureza terrestre. Não há outra espada com que se defender senão a doce água da vida eterna; esta o orgulhoso e terrível espírito-ígneo não abomina, pois é como veneno que o coloca em fuga.

6. Se desejamos justamente, fazer com que a árvore da fé Cristã seja conhecida, devemos dizer: Sua raiz se encontra no mysterium da esperança, ela cresce no amor e seu corpo na manutenção da fé, que é quando a imagem, com o seu mais puro desejo, penetra no amor de Deus e alcança a substancialidade de Deus, ou seja o corpo de Cristo. Este é o corpus onde a árvore se sustenta, cresce, floresce e frutifica na paciência. Todos estes frutos pertencem ao mundo angélico, eles são o alimento da alma; é deles que a alma se alimenta e refresca sua vida ígnea a fim de que se transmute para luz de bondade.

7. Assim cresce a árvore no paraíso de Deus, uma árvore que o homem exterior não conhece, e que razão alguma alcança, mas muito bem conhecida da nobre imagem. Quando a vida externa é interrompida, a árvore se manifesta e todas as suas obras a seguem no mysterium da esperança onde foi semeada. Portanto, aqueles que pretendem seguir o caminho dos peregrinos de Deus, não busquem ter, neste mundo, dias bons e prazeirosos, repletos de honras terrestres; mas tribulação, escárnio e perseguições o esperam a cada minuto. Aqui ele está apenas num vale de miséria e deve permanecer continuamente na guerra, pois o demônio o ataca como um leão que ruge, e incita todos os seus filhos da fraqueza contra ele. Ele é considerado um tolo, um estranho ao seu irmão, a casa de sua mãe o despreza e o rejeita. Ele passa por tudo isto, semeia na tribulação, sofre angústias, mas não há ninguém que o compreenda ou que tenha seu coração tocado. Todos dizem que sua loucura é sua ruína. Assim ele permanece oculto ao mundo, pois com sua nobre imagem ele nasceu, não do mundo, mas de Deus. Ele semeia na dor e colhe na alegria. Mas quem poderia expressar a glória com que é recompensado? Ou quem ousaria falar sobre a coroa cavalheiresca que lhe pertence? Quem poderia expressar a coroa virginal que a virgem da sabedoria de Deus coloca sobre ele? Onde estará tal beleza que vai além do Céu? Ó nobre imagem! Tu és, de fato, a imagem da Santa Trindade onde o próprio Deus habita. Deus coloca sobre ti suas jóias mais preciosas, para que tu te regozije eternamente Nele.

8. Qual é então, a natureza deste mundo, visto que se interrompe e leva o homem unicamente à dor, angústia e miséria, e o que é pior, à ira de Deus, destrói sua imagem pura e o cobre com uma monstruosa casca? Ó, que vergonha imensa o homem terá por causa disto, quando no dia do julgamento de Deus aparecerá assim, com uma imagem bestial, sem falar do que aconteceu depois, que o fará permanecer ali para sempre. Agora uma repetição terá início, choro e lamentações pelas garantias perdidas, que não podem ser recuperadas em toda eternidade, pois a imagem tem de estar eternamente diante do terrível demônio e realizar o que Lucifer, o príncipe das abominações, deseja.

CAPÍTULO VIII

DE QUE MANEIRA DEUS PERDOA O PECADO,

COMO SE TORNAR UM FILHO DE DEUS

1. Meu caro, buscador, mente ansiosa, faminto e sedento pelo reino de Deus, preste muita atenção ao solo que lhe é mostrado. Não é nada fácil se tornar um filho de Deus, como Babel nos ensina. Ali, consciências são levadas por histórias, são encantadas pelo sofrimento e morte de Cristo; ali o perdão dos pecados é ensinado historicamente como num tribunal mundano, lá a culpa é perdoada em troca de favores, embora o homem permaneça um hipócrita em seu coração. Aqui tudo é totalmente diferente; Deus não terá nenhum hipócrita. Ele não tira os nossos pecados enquanto nos apegamos unicamente à ciência e nos confortamos com os sofrimentos de Cristo, sendo que nossa consciência permanece nas abominações. As Escrituras dizem: "É preciso nascer de novo, ou não verás o reino de Deus". Um homem que se encanta com os sofrimentos e morte de Cristo, atribuindo isto a si mesmo, mas que com sua vontade não se regenera no homem Adâmico, é como aquele que acredita que seu patrão irá lhe conceder alguma terra, embora não seja seu filho, mesmo que o patrão tenha prometido entregar a terra somente a seu filho. Aqui é a mesma coisa: Para receberes a terra de teu mestre e tê-las como tua, deves te tornar seu verdadeiro filho, pois o filho da serva não herdará o mesmo que o filho da mulher livre. O filho da História é um estranho; tu deves nascer de Deus em Cristo, para que possas te tornar um verdadeiro filho; assim serás filho de Deus e um herdeiro do sofrimento e morte de Cristo. A morte de Cristo é a tua morte, a Sua ressurreição do túmulo é a tua ressurreição, e Seu reino eterno o teu reino. Com isto tu nascerá como o verdadeiro filho de Sua Carne e Sangue e herdarás Teus bens. Não há outra forma de se tornar o filho e o herdeiro de Cristo.

2. Enquanto o reino terrestre permanecer na tua imagem, tu és o filho terrestre do corrupto Adão. Não há como disfarçar. Podes dizer belas palavras diante de Deus, à vontade, tu não passas de um filho estranho e os bens de Deus não serão teus até que tu retornes com o filho pródigo num real ato de penitência e arrependimento por tua herança perdida. É preciso, para tanto, que tu saias com tua vontade-espírito desta vida terrestre e interrompa a vontade terrestre; (é doloroso renunciar, com a mente e vontade-espírito, aos tesouros uma vez possuídos, nos quais a vontade-espírito foi gerada), e tu entrarás na vontade-espírito de Deus. Ali tu irás semear a tua semente no reino de Deus e renascerá em Deus como um fruto que cresce nos campos do Senhor, pois receberás o poder de Deus, o corpo de Cristo e o novo corpo em Deus irá crescer em ti. Serás tu o filho de Deus e os bens de Cristo pertencerão a ti. Seu mérito será teu mérito, Seu sofrimento, morte e ressurreição, todos teus, tu és um membro de Seu corpo, Seu Espírito é teu espírito, Ele irá te guiar no caminho correto e tudo o que fizer, farás a Deus. Tu semeias neste mundo e colherás no céu de Deus; tu és a obra maravilhosa de Deus e tu revelas Suas maravilhas na vida terrestre e as atraem, com tua vontade-espírito para o santo mysterium.

3. Lembre-se disto: a avareza, o orgulho, a inveja, o falso julgamento, os homens fracos, que colocam sua vontade e desejos nos bens terrestres, dinheiro e possessões, nas doçuras desta vida e consideram dinheiro e posses como seu tesouro, depositando aí os seus desejos, embora desejem ser filhos de Deus; estes que se posicionam diante de Deus e fingem, a fim de que Ele perdoe seus pecados, mas que com sua imagem permanecem na pele de Adão, na carne de Adão, e que se consolam com os sofrimentos de Cristo, não estão mais que fingindo. Eles não são filhos de Deus; para serem filhos de Deus é preciso nascer em Deus, de outra forma estarão apenas se enganando, juntamente com os hipócritas que produzem aspectos ilusórios diante de ti. Eles ensinam, mas não são conhecidos de Deus, e não são enviados para ensinar. Ensinam para sobreviverem e para receberem honras mundanas, são os grandes prostitutos de Babel, que fingem diante de Deus com seus lábios, mas que com seu coração e sua vontade-espírito servem ao dragão de Babel.

4. Cara alma, se queres te tornar filha de Deus, prepara-te para a tentação e tribulação. Não é fácil e nem prazeiroso entrar na vida de filho, principalmente quando a razão se encontra aprisionada no reino terrestre. A razão deve ser quebrada, e a vontade deve abandoná-la, semeando a si mesma no Reino de Deus, numa humilde obediência, como um grão é semeado no campo. A vontade tem que se tornar como que morta na razão e se doar à Deus; assim o novo fruto cresce no reino de Deus.

5. O homem portanto, permanece numa vida ternária e tudo pertence a Deus; as essências ígneas interiores do primeiro princípio são incorporadas ao novo corpo em Cristo, para que possam fluir da vontade de Deus para a carne e sangue de Cristo. Seu fogo é o fogo de Deus, de onde queima o amor, a bondade, a brandura, de onde emana o Espírito Santo e os auxiliam a manter a batalha contra a razão terrestre e também contra a carne corrupta e a vontade do demônio. O jugo do homem pela vontade terrestre se torna mais fácil para ele, mas é preciso se manter na guerra enquanto estiver neste mundo, pois o sustento pertence à vida terrestre; este homem deve buscar o seu sustento, sem contudo colocar aí o seu coração e a sua vontade, separar as coisas; ele deve confiar em Deus, sua razão terrestre cai continuamente na dúvida de que ele pode sofrer perdas; ele deseja continuamente ver a Deus, mas não consegue, pois Deus não habita no reino terrestre mas em si mesmo.

6. Desta forma, a razão, por não poder ver a Deus, deve ser dirigida para a esperança; lá a dúvida corre contra a fé e destruiria a esperança. Então a vontade determinada irá lutar com a verdadeira imagem contra a razão terrestre. Isto é doloroso e geralmente vai mal, principalmente quando a razão considera o curso deste mundo, e reconhece sua vontade-espírito como tola em relação ao curso deste mundo. Dizem as Escritura: Seja moderado, vigie, jejue e ore, a fim de que tu possas adormecer a razão terrestre, e torná-la como que morta, para que o espírito de Deus possa encontrar um lugar em ti. Quando ele aparece, domina rapidamente a razão terrestre e olha com seu amor e doçura para a vontade em sua angústia, e cada vez que isto ocorre um formoso pequenino galho da árvore da fé é gerado, e toda tribulação e tentação servem para o bem dos filhos de Deus. Pois, quando Deus ordena que seus filhos sejam trazidos para a angústia e tribulação, eles se preparam para dar à luz a um novo galho da árvore da fé. Cada vez que o espírito de Deus aparece ele provoca um crescimento, o que proporciona grande regozijo na nobre imagem. É só uma questão do primeiro terrível ataque violento, quando a árvore terrestre deve ser dominada e o grão nobre semeado no campo de Deus, a fim de que o homem possa aprender a conhecer o homem terrestre. Pois quando a vontade recebe a luz de Deus, o espelho se vê em si mesmo, uma essência vê a outra na luz. Assim o homem em sua totalidade , se encontra em si mesmo e sabe o que é, o que não pode saber na razão terrestre.

7. Portanto, que ninguém pense que a árvore da fé Cristã possa ser vista ou conhecida no reino deste mundo. A razão externa não a conhece, e embora a árvore justa já se encontre no homem interior, a razão externa e terrestre ainda duvida, pois o Espírito de Deus é para ela uma bobagem, que não pode ser compreendida. Embora possa ocorrer que o Espírito Santo se revele no espelho exterior, a fim de que a vida exterior tenha grande satisfação e pense: Agora eu ganhei um convidado valioso, agora eu vou acreditar, ainda que não haja uma continuação perfeita, pois o Espírito de Deus não mantém seu domínio na fonte terrestre. Ele terá um vaso puro, e quando se retirar em seu princípio, ou seja, sua verdadeira imagem, a vida exterior fica desesperada e retraída. Assim, a nobre imagem deve lutar sempre contra a vida-razão exterior, e quanto mais ela luta, mais cresce aquela árvore justa, pois a imagem coopera com Deus. Pois da mesma forma que uma árvore terrestre cresce ao vento, chuva, frio e calor, também a árvore da imagem de Deus cresce dentre sofrimento e tribulação, na angústia e na dor, no escárnio e no desprezo, e floresce no reino de Deus e gera frutos na paciência.

8. Observe que sabemos que devemos aplicar tudo isto a nós mesmos, antes de nos deixarmos levar por qualquer medo ou terror, pois iremos, de fato, aproveita e colher por toda eternidade, aquilo que plantamos aqui em meio a angústia e a miséria, a fim de que tenhamos o conforto eternamente, Amém, Aleluia!